
A ENTRADA DO REI
O rei viaja. Madrid, Trujillo, Mérida, Badajoz, Elvas, Estremoz, Évora, Montemor, Almada, Belém e Lisboa. Já todos zombavam desta pretensa travessia, quando se aperceberam que, desta feita, era mesmo intenção consumada. Desde a sua coroação, duas décadas antes, não passara da promessa. Mas agora ei-lo às portas de Lisboa, aguardando a sua triunfal entrada. A antiga capital, outrora centro da civilização ocidental, está ainda atrasada para a sua recepção, está a engalanar-se como nunca, qual amante que tudo joga para seduzir e conquistar. Não é fácil segurar o Senhor do Mundo. Rei de Espanha, de Portugal e dos Algarves daquém e dalém-mar em África, de Nápoles e da Sicília. Filipe de seu nome, como nome de uma dinastia. Filipe o terceiro mas também o segundo. Aquele que se desviou das promessas do pai, e enfraquecera um Portugal outrora jurado como território preservado na sua influência e autonomia. Como será agora, no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de1619? Há que receber e convencer o Rei, o Rei fará a sua entrada...
Entre o entusiasmo da populaça que aclama a passagem de Filipe pelos inúmeros arcos do triunfo edificados para a ocasião, estão rejubilantes mãos erguidas aos céus de personagens de outras histórias mais pequenas, histórias de intrigas, traições, enganos e desencontros, entre duelos de capa e espada, ao bom jeito da Comédia Nova, onde Lope de Vega foi um expoente.
A Estação Teatral da Beira Interior, companhia portuguesa que tem marcado, pela especificidade do seu trabalho, o panorama teatral do seu país, encontra numa obra do lisboeta hispanófono Jacinto Cordeiro (dramaturgo seiscentista de assinalável aceitação na sua época, hoje esquecido) uma maravilhosa oportunidade para explorar a sua própria linguagem. Neste objecto com quase 400 anos, todos os princípios e referências que, nesta última década,têm norteado a ideia de teatro desta companhia estão ausentes. Como fazer, então, o seu teatro ante tamanha adversidade? Mais importante do que o perfume das coisas improváveis e fora da ordem natural dos percursos é a capacidade de conseguir extraí-lo.
"A Entrada do Rei", na tradição ocidental dos contadores de histórias, onde Dario Fo ou Philippe Caubère são referências incontornáveis, é afinal um pretexto para explorar o Teatro Total e a vertente do actor-criador. E, por isso, um insuspeito contributo para firmar o teatro como necessidade profiláctica de uma sociedade do espectáculo cada vez mais desumanizada.
2014
09_AGO / ALCANTARA / PLAZA SAN PEDRO